Às vezes são horas sem acontecer nada. Apenas o barulho da mata, dos helicópteros, o sol da tarde e os sinais do cansaço de quem quase não dormiu por mais de dois dias. Quando o calor é grande, o jeito é tirar o peso do uniforme de operações por um minuto, para o alívio. Mas basta uma mensagem urgente no celular ou alguém gritando ao longe para que a equipe rapidamente feche os zíperes, amarre as botas e afivele os capacetes para entrar nos jipes e dar a ignição. Prancha de salvamento, cordas, mochilas com o material de primeiros socorros. Ninguém sabe o que irá encontrar na “zona quente”, como se chama no jargão a área mapeada para os resgates em situações de desastres ou eventos com múltiplas vítimas.

Às 15:47 deste domingo, 27 de janeiro, os socorristas voluntários da Cruz Vermelha Brasileira – Filial Minas Gerais (CVB-MG) saíram para atender a mais um chamado desses, quando estavam na Estação do Conhecimento de Brumadinho, sede dos trabalhos humanitários na região do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, da mineradora Vale. “Recebemos uma demanda de urgência para verificar a possível localização de um sobrevivente por meio do sinal de um telefone celular. Se o celular estava ligado próximo, poderia haver alguém ali com vida. Era um terreno de vegetação bastante fechada, bem próximo da lama”, relata Walter de Moraes, 42 anos, um dos 50 integrantes da equipe da Cruz Vermelha em Minas que têm atuado na missão desde o primeiro momento.

Era ainda o início da tarde da sexta-feira (25) quando o grupo foi convocado para se reunir na sede da instituição, na região central de Belo Horizonte, e de lá partir imediatamente em comboio de veículos 4×4 para averiguar a dimensão da tragédia de rompimento da barragem e se somar às equipes nas buscas. São membros do time especializado de emergência e resgate da Cruz Vermelha em Minas, constantemente treinados, que já atuaram em situações como o rompimento de barragem em Mariana (MG) no ano de 2015 e as chuvas no estado e na região serrana do Rio de Janeiro em 2011. Os jipes são utilizados para o acesso em condições terrestres desfavoráveis, lama ou regiões remotas não alcançadas por outros veículos.

No trabalho de resgate Brumadinho, a equipe precisa de grande cuidado e técnica para acessar a região soterrada e buscar possíveis vítimas. Os rejeitos da barragem formam um solo movediço, onde a firmeza trapaceia cada nova pegada com a possibilidade de afundar. Em grupos pequenos, amarrados uns aos outros, utilizando varetas para atestar a profundidade, os membros do grupo da Cruz Vermelha chegam a ter lama até a cintura nas ações, em um processo lento. A comunicação efetiva entre o time e a atenção aos procedimentos já ensaiados nos treinamentos são cruciais para realizar a tarefa. As chances de encontrar sobreviventes caem consideravelmente com o passar do tempo.

EVACUAÇÕES, CADASTROS, CONTATOS

De acordo com o diretor de Projetos da CVB-MG e coordenador do grupo, Bernardo Eliazar, a Cruz Vermelha realizou diversas outras ações, além do resgate direto, desde o primeiro momento. “A equipe precisou agir, por exemplo, na evacuação do bairro Pires, quando a sirene de alerta foi acionada na madrugada do domingo”, explica. Dessa vez o trabalho foi convencer as famílias que não queriam sair de suas casas a deixar o local. A evacuação de emergência foi decretada após as equipes de resgate avaliarem a possibilidade do rompimento de outra barragem próxima à cidade, em um dos momentos mais delicados da operação.

Já no centro de assistência às famílias das vítimas e moradores, a Cruz Vermelha se prontificou, principalmente, no trabalho acolhida e cadastro, em contato com as centenas de pessoas que procuram informações durante todo o dia. O trabalho é realizado em parceria com a Defensoria Pública de Minas Gerais, Polícia Civil do estado e o poder público municipal. Mães que procuram por filhos, irmãos que perderam o contato pelo celular, familiares e amigos que enfrentam um forte estado emocional e que precisam, às vezes, do próprio atendimento de saúde ao passarem mal durante a espera.

Tudo vale como pista ou estratégia para buscar um sobrevivente. O registro de uma última conversa no telefone, o relato dos parentes sobre a rotina da pessoa na região, algo que tenha deixado no caminho como rastro. A comunicação entre a base e as equipes em campo, no entanto, não é simples, como descreve a instrutora de socorro e resgate da Cruz Vermelha em Minas Gerais, Mafalda Santos, que também participou do trabalho. “O sinal de celular é comprometido por causa do desastre e por causa do uso sobrecarregado de celulares na área. Às vezes as informações demoram a chegar”, conta. O trabalho de reestabelecimento de vínculos familiares é uma das prioridades da Cruz Vermelha, em todo mundo, quando existem relações rompidas pela guerra ou desastres como o de Brumadinho.

FUTEBOL PARA PESCAR UM SORRISO

Enquanto as notícias não chegam, os parentes das vítimas se confortam com o que é possível. As redes de fraternidade e interação acabam ajudando aqueles que, mesmos desconhecidos, apoiam-se uns aos outros pela empatia de uma situação comum. No ginásio da cidade, de repente uma partida de futebol quebra a rotina da tarde dos alojados. Os jogadores são um voluntário da Cruz Vermelha e um grupo de crianças desabrigadas ou com familiares desaparecidos. Bola rolando. No epicentro da maior tragédia que a cidade de Brumadinho já viu, a possibilidade de pescar um pequeno sorriso ou um momento de distração para aquelas crianças torna-se, então, uma das prioridades da missão humanitária.

“São ações que acontecem de forma espontânea e que acabam promovendo a solidariedade, isso é muito importante”, destaca o voluntário Walter de Moraes. Na espera por informações sobre as vítimas estão pessoas de todas as origens, idades, que recebem também o apoio de psicólogos e de assistentes sociais de diversas instituições, do poder público e da sociedade civil. O atendimento psicossocial nesse tipo de situação já foi realizado, pela Cruz Vermelha Brasileira, em situações como o do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS) no ano de 2013, das chuvas de Rio e Minas em 2011 e no atendimento às famílias de vítimas do ataque a uma creche do município de Janaúba (MG) em 2017.

Entretanto, apesar da grande comoção e mobilização na tragédia de Brumadinho, a Cruz Vermelha em Minas Gerais ressalta que dessa vez não está recebendo doações para o município e que, assim como há afirmou a Defesa Civil de Minas Gerais, os donativos que existem já são suficientes. A CVB-MG também não recebe doações em dinheiro e orienta a população a evitar depositar qualquer quantia em contas desconhecidas, para evitar golpes. “Alertamos também a população de Belo Horizonte ou de outros lugares de Minas e Brasil para não virem à cidade, pois nesse momento o fluxo de doações ou de mais gente na área ainda pode interferir no trabalho das equipes de resgate”, explica o diretor de Projetos Bernardo Eliazar.

EM BUSCA DA VIDA

Ao chegarem no local da chamada de emergência deste domingo, narrada no início da reportagem, a equipe da Cruz Vermelha não encontrou o aparelho celular que estava sendo rastreado. Porém, em outro ponto desse trajeto, os socorristas avistaram um corpo sem vida. Todo o esforço da ação foi, então, mobilizado no resgate da vítima fatal, com o esforço e risco da movimentação sobre a lama, o uso da prancha de salvamento, o transporte tácito para um local seguro para depois a remoção do Corpo de Bombeiros e do Instituto Médico Legal. Segundo os voluntários, esse trabalho também deve ser realizado com todo o empenho. “É importante frisar que, mesmo se as chances de vida no terreno parecerem poucas, a dedicação das buscas e o esforço de resgate continuam altos, considerando sempre a possibilidade de encontrar sobreviventes”, diz Walter de Moraes. Ele também registra o valor humanitário do resgate aos corpos localizados sem vida. “Cada retirada pode significar uma família a mais que terá o direito de identificar e enterrar o seu ente querido, e essa é também a nossa função”, aponta.

Cai a noite em Brumadinho. Alguns helicópteros prosseguem em operações esparsas, jornalistas e emissoras de televisão transmitem as últimas informações, reuniões são realizadas para atualizar o balanço das buscas e a cidade parece continuar totalmente desperta. O sol e a lua parecem se revezar em um único dia, que começou com o rompimento da barragem e que não tem previsão para acabar. Às vezes são horas sem acontecer nada e o saldo do cansaço se acumula. Nas botas os calos, nos ombros a reclamação de alguma pequena dor, sem muita importância. Mas basta qualquer novo alerta, qualquer chamado, a qualquer horário, para os corpos se erguerem e voltarem à zona quente. Para os homens e mulheres que fazem a diferença em Brumadinho nesse momento, o que dói mesmo é não fazer nada.

SAIBA MAIS SOBRE A CRUZ VERMELHA

A Cruz Vermelha é o maior e mais antigo movimento humanitário do mundo, presente em mais de 190 países há mais de 150 anos. É referência, em épocas de guerra ou paz, para atender às populações em vulnerabilidade, vítimas de desastres naturais, refugiados, comunidades atingidas pelos conflitos armados e eventos de grande impacto. Sua missão é atenuar os sofrimentos humanos sem nenhuma distinção de origem, raça, credo, gênero, condição financeira, orientação sexual ou política. Sua ação é baseada em sete princípios fundamentais: humanidade, imparcialidade, neutralidade, voluntariado, independência, unidade e universalidade. No Brasil a Cruz Vermelha atua desde 1908 e em Minas Gerais desde 1914.

Fonte: https://imprensa5898.wixsite.com/meusite/noticias/lama-na-cintura-e-futebol-com-crian%C3%A7as-desabrigadas-o-trabalho-da-cruz-vermelha-em-brumadinho